- e ninguém vê;

c.f.a.

Não queria, desde o começo eu não quis.
Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso.
Fugi.
Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder.
Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou.
Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero.
Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha.
Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. 
Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. 
A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez.
Fiquei. 
Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. 
Que aceitei a queda, que aceitei a morte.
Que nessa aceitação, caí.
Que nessa queda, morri.
Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora.
E ninguém vê que estou morto.
(Inventário do ir-remediável - Caio Fernando Abreu)



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